Crônica – Cássio Zanatta – Gazeta Do Rio Pardo zd30 Informação com Credibilidade p/ São José do Rio Pardo Mon, 21 Aug 2023 12:16:54 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.6.1 /wp-content/s/2018/02/THUMB-150x150.png Crônica – Cássio Zanatta – Gazeta Do Rio Pardo zd30 32 32 Eu pensava 1i3ez /colunas/eu-pensava/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=eu-pensava /colunas/eu-pensava/#respond <![CDATA[ .]]> Mon, 21 Aug 2023 12:16:53 +0000 <![CDATA[Colunas]]> <![CDATA[Crônica - Cássio Zanatta]]> /?p=18034 <![CDATA[

Eu pensava que todo mundo gostasse de ver constelação. Quando menino, achava que todos enxergavam como eu e meus quase sete graus de miopia: as coisas borradas, imprecisas, sem contornos definidos. Pensava que ser criança fosse para sempre. Que o frango a molho pardo levava esse nome porque tinha sido criado em São José, e … 5o2y2h

The post Eu pensava appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
<![CDATA[

Eu pensava que todo mundo gostasse de ver constelação. Quando menino, achava que todos enxergavam como eu e meus quase sete graus de miopia: as coisas borradas, imprecisas, sem contornos definidos.

Pensava que ser criança fosse para sempre. Que o frango a molho pardo levava esse nome porque tinha sido criado em São José, e que as verrugas de fato nascessem nos dedos que apontavam as estrelas. Pensava que fosse difícil só pra mim.

Jamais imaginei que meus pais um dia não mais estivessem. Que eu fosse capaz de tocar (mal, mas tocar) piano. Que aria o resto da vida sem pular de trampolim, ou um dia veria uma agência bancária toda feita de vidro. Que São Paulo tivesse carnaval de rua e noites quentes, onde patinetes e tatuagens reinariam.

Pensava na morte da bezerra, não como uma expressão, mas como algo que presenciei e assombra até hoje.

Achei que era só me apaixonar que tudo estaria resolvido. Que as pipocas estourassem por vontade própria. Que os cometas nos visitassem com mais frequência. Que as borboletas afinal tomassem tenência de sua extravagância e as lagartixas fossem simpáticas a todos.

Quando eu podia supor que meu corpo me trairia? Que o rádio-relógio pudesse existir, já que os dois nomes anseiam por coisas diferentes: o primeiro, ilusão; o outro, exatidão? Que Plutão ia ser rebaixado, deixaria de ser um planeta, ou que eu poria os pés em Salzburg? Como eu podia saber que o trema corria risco de vida? Que nosso Brasil insistisse num sono sem fim?

Eu pensava tanto. Não sei se fiz bem.

Podia apostar um Chicabon, duas caixas de bombinhas, uma fita cassete virgem e uma bola de capotão – sem saber que um dia eles não existiriam mais. Muita sacanagem (maior foi continuar dando o nome de Chicabom a isso que aí está).

E eu que pensava que não fosse possível haver junho sem balão, nem jabuticaba vendida em supermercado. Ou que, com o tempo, os apartamentos fossem diminuindo de altura e os homens, aumentando. E que os aviões a jato morressem de inveja do planar dos urubus.

Quem diria que as certezas deixariam de ter convicção? O celular ia servir mais para escrever e tirar foto que para falar? Que o casal amigo ia se desfazer? Pisar no barro virasse um acontecimento raro? Que os churrascos cairiam em desgraça? Ou que chegaria o dia em que um carioca não soubesse cantar uma única música de Tom e Vinícius?

Algumas coisas eu pensei, outras, me surpreenderam. O eclipse total. O papamóvel. Os pingos ritmados. O funcionamento seguro das usinas nucleares. O e escolar. As lavanderias automáticas. A aposentadoria das abotoaduras. Uma enxurrada que subia a rua. A paçoca diet.

Daí eu descobri que os textos não nasciam com ritmo, por mais barulho fizessem as teclas. Isso era com a gente. Mas nessas coisas, não fui capaz de pensar. O mundo tem mais imaginação que eu.

The post Eu pensava appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
/colunas/eu-pensava/feed/ 0
Pedra e cebola 271145 /colunas/pedra-e-cebola/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=pedra-e-cebola /colunas/pedra-e-cebola/#respond <![CDATA[ .]]> Mon, 14 Aug 2023 12:17:45 +0000 <![CDATA[Colunas]]> <![CDATA[Crônica - Cássio Zanatta]]> /?p=17990 <![CDATA[

Íamos em cinco, os meninos, por um cebolal. Dezenas de ruas paralelas de cebola. De quando em quando, cortando o macio da terra, um cano de ferro, que trazia água do açude para aspergir na plantação. Cebola é produção de inverno, tempo de seca, e a água precisa chegar de algum jeito para que o …

The post Pedra e cebola appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
<![CDATA[

Íamos em cinco, os meninos, por um cebolal. Dezenas de ruas paralelas de cebola. De quando em quando, cortando o macio da terra, um cano de ferro, que trazia água do açude para aspergir na plantação. Cebola é produção de inverno, tempo de seca, e a água precisa chegar de algum jeito para que o fruto inche e se desenvolva.

Cebola não é muito chegada em encostas. Prefere os solos planos, inclinações mínimas e a companhia dos colonos que não têm medo de andar. Mas havia um pequeno morro ao fim da plantação e nele subimos para irar o panorama. Escalamos então uma pedra para descansar. A pedra estava quente de sol. Quando desci, pelo outro lado, vi que havia um nome de mulher escrito em branco na pedra.

Há quanto tempo estava ali? As chuvas tentaram lavar o nome, ele preferiu ficar. Talvez tenha sido escrito por um caboclo enamorado, cansado de colher cebola debaixo do sol, que se encostou na pedra para sonhar com a mulher. Conseguiu, por alguma magia, que sua escrita a atraísse?

Uma sorte ele teve: apaixonou-se por um nome curto, de quatro letras, pouco trabalho teve para se declarar.

Ou, vai saber, foi a mulher mesmo que deixou seu nome ali. Por vaidade, por não ter nada melhor pra fazer e dispor de cal, pincel e pedra. Ou para que, anos depois, seu gesto virasse texto, colhido neste momento pelos olhos de quem me lê.

Faz um estranho eco, um nome escrito nas pedras. A dureza mineral não combina com o sentimento que ele inspira, como o viço e maciez do talo escondem a acidez da cebola.

Quando a tarde se cansou, o sol caído espichou nossas sombras. Por essa elasticidade a pedra não contava.

Lembro que voltamos de trator. A caçamba carregada de cebola e nós em cima. Um cantava, o outro contava feitos espantosos, e os olhos lacrimejando. No ar puro de queimar pulmão, um de nós fumava sem parar. E eu pensava na mulher, não sei se ficou tocada, se ficou com o caboclo, mas seu nome na pedra ficou.

Somos muito estranhos. Imagine que um ser humano, um belo dia, mordeu aquela coisa amarga e ardida que é cebola e, em vez de cuspir e procurar uma manga para adoçar a boca, chegou à estranha conclusão de que aquilo ia servir para refogar e temperar a comida. Enfim…

O trator fazia subir o pó que a falta de chuva acumulava. Chacoalhávamos nossa infância pela estrada de terra. Disse há pouco que falávamos, mas o fazíamos tão pouco, no mais seguíamos em silêncio. Queríamos chegar rápido, hoje eu não teria pressa alguma em que o eio tivesse fim.

Chegamos fedendo a cebola misturada com terra, suor e a fumaça do cigarro que tinha grudado na pele. E, como todos os meninos desde que o mundo é mundo, era preciso lutar contra aquela perda de tempo que era tomar banho. Conosco, a água era eficiente e limpava a pele, para compensar sua impotência em lavar a tinta da pedra.

Vinda a noite, meus avós, meus pais, tios, meus irmãos e mais um bando de primos se reuniam sob a luz fraca e amarelada da sala de jantar. Aqui, o silêncio perdia feio, era uma falação e um contar que não tinha fim. As bocas só se aquietavam na mastigação, a pausa para nos olharmos com amor e respeito.

Uma plantação de cebola é a desculpa ideal para os olhos arderem sem dar explicação.

The post Pedra e cebola appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
/colunas/pedra-e-cebola/feed/ 0
O estrago da pedra o2d70 /colunas/o-estrago-da-pedra/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-estrago-da-pedra /colunas/o-estrago-da-pedra/#respond <![CDATA[ .]]> Mon, 07 Aug 2023 12:28:29 +0000 <![CDATA[Colunas]]> <![CDATA[Crônica - Cássio Zanatta]]> /?p=17948 <![CDATA[

Era que um garoto de seus 10 anos andava pela calçada. Digo garoto, mas não sei ainda se diz assim, seria melhor menino? Guri (gaúcho demais)? Jovem (meio besta)? Adolescente é palavra de muita pretensão, me recuso. Homem ainda não era, porque homem em geral anda muito sério e preocupado para ficar chutando pedra à …

The post O estrago da pedra appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
<![CDATA[

Era que um garoto de seus 10 anos andava pela calçada. Digo garoto, mas não sei ainda se diz assim, seria melhor menino? Guri (gaúcho demais)? Jovem (meio besta)? Adolescente é palavra de muita pretensão, me recuso. Homem ainda não era, porque homem em geral anda muito sério e preocupado para ficar chutando pedra à toa na calçada.

Pois foi isso que o garoto fez: chutou uma pedra. Chutou com força uma pedra de respeito, no que elogio sua coragem, porque, mesmo calçando um desses tênis modernos, cheios dos reforços e amortecimentos, ela bem podia ter moído seu dedão. Digo ainda: pedra o suficiente para quebrar uma vidraça – coisa que os homens, também não entendo por que razão, se desinteressam de fazer depois de certa idade.

A pedra chutada com força bateu na lateral de um carro estacionado, deixou um arranhão na lataria (felizmente para o garoto, não visto ou ouvido por mais ninguém, muito menos pelo dono do carro) e seguiu seu trajeto, pipocando pelo caminho.

Não, este não é daqueles textos que querem provar que o menor gesto, um simples chutão numa pedra, por exemplo, pode provocar uma sucessão de acontecimentos: quebrar um vaso e fazer o gato gritar de susto, derrubando da escada o trabalhador que consertava o fio da rua, e assim interromper o fornecimento de energia – uma sequência que iria desencadear uma onda que correria o mundo até causar a queda do Primeiro-Ministro japonês.

O fato é que, após danificar a lataria do carro, a pedra voltou saltitante e ainda destemida para a calçada, até encontrar no caminho – e ali se deter – um calcanhar. Um calcanhar feminino, para agravar a história. Um calcanhar feminino já de certa idade, para aumentar o drama. Que fez com que a senhora soltasse um “ai” sincero, se curvasse de dor, e se sentasse no meio da calçada.

O garoto podia muito bem fingir que não viu, que não era com ele, ar assobiando uma música qualquer, tentando ser invisível. Mas não: correu até ela, agachou-se ao seu lado, pediu desculpas, disse que fora ele o culpado, não tivera a intenção e perguntou se estava bem. Ela disse que sim, que não havia problema, “eu também já fui mocinha”, se levantou, desmanchou num cafuné o cabelo do garoto e saiu manquitolando.

Deve ter sido uma menina danada, a senhora. Uma moleca, como dizíamos, também não sei se ainda se diz. Uma menina de botinas, que costumava chutar pedras, jogar de goleira no time da rua, e, mais tarde, a vocalista da banda de rock da turma. Podia ter feito um escândalo, ar sermão no garoto, chamar o guardinha, tascar umas bolsadas, mas não. Acharia até normal se fosse a situação inversa: que fosse ela a bater o tiro de meta numa pedra e esta encontrasse o calcanhar do menino, que menos dor causaria, devido ao eficaz amortecimento dos tênis modernos já citados. Donde concluo (pouco cientificamente) que as pessoas que chutam pedras na rua garantem a todos um futuro mais simpático e sorridente. Meninas, garotos, moças ou senhores. Agora que você sabe, em frente. Ainda dá tempo. Mas devagar com o chute, controle a força, use mais pontaria que potência. Ou a coisa pode sair do controle, a sequência ganhar o mundo e acabar derrubando o coitado do Primeiro-Ministro japonês, que não tinha nada a ver com a história.

The post O estrago da pedra appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
/colunas/o-estrago-da-pedra/feed/ 0
Quem sabe? 1273r /colunas/quem-sabe/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quem-sabe /colunas/quem-sabe/#respond <![CDATA[ .]]> Mon, 31 Jul 2023 12:01:46 +0000 <![CDATA[Colunas]]> <![CDATA[Crônica - Cássio Zanatta]]> /?p=17903 <![CDATA[

Não sei explicar o que me deu. Sei que não quis usar o celular, não me pareceu adequado. Peguei o telefone fixo, o mais antigo da casa, todo preto como convém aos fixos, tirei do gancho, esperei o sinal de linha. E liguei para a casa de meus pais, com os sete números antigos mesmo. …

The post Quem sabe? appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
<![CDATA[

Não sei explicar o que me deu. Sei que não quis usar o celular, não me pareceu adequado. Peguei o telefone fixo, o mais antigo da casa, todo preto como convém aos fixos, tirei do gancho, esperei o sinal de linha.

E liguei para a casa de meus pais, com os sete números antigos mesmo. Coisa que muito fiz nesta vida, só que dessa vez havia uma diferença: meu pai partiu em 2009 e minha mãe, quatro anos depois.

Não ligo para esse número, portanto, há muito tempo. E me espanta, não o sem-sentido da tentativa, mas o por quê de não tê-la feito antes.

Pasmem: o telefone está tocando do outro lado. Alguém vai atender? Se sim, meu pai primeiro vai dar aquele pigarro, como fez a vida toda, antes de dizer “alô?” com ênfase no a, como se o acento estivesse ali. Então lhe darei os parabéns pela vitória do Corinthians. Talvez assim disfarçasse o impacto de voltar a ouvir sua voz.

Como de costume, ados alguns segundos, minha mãe vai pegar a extensão e por um tempo assumir a conversa, meu pai só ouvindo.

O que eu lhes diria? Deus do céu, devo dizer alguma coisa ou só escutar aquelas vozes? Não, eu não iria aguentar, diria num afobamento que viessem nos ver imediatamente, a mim, Beatriz e as crianças – estão tão lindas, não são mais crianças (como se o tempo no caso obedecesse às normalidades). Ou me dissessem onde encontrá-los, pego o carro e vou já para aí; seja onde for o aí, juro que chego num minuto – tão rápido que até o verbo já foi para o Presente.

O telefone continua tocando. E se atender uma voz estranha, o que vou dizer? A verdade a faria desligar na minha cara e chamar a polícia – ou, muito justo, o manicômio.

O telefone continua tocando. Talvez eu tenha ligado na hora errada. Papai deve estar no Centro, trabalhando na loja, e mamãe na feira. Ou, já aposentado, papai está flanando por aí, à procura de uma prosa que compense, e minha mãe, ajudando madrinha Rosa a fazer goiabadas.

O telefone continua tocando. Minha mãe deve estar mais velhinha. Será que vai fazer como a vó, que, já não ouvindo bem, nem deixava o outro lado falar, dizia o que queria num atropelo, sem respiro, e desligava sem se despedir?

O telefone continua tocando. Dois minutos. Alguém atenda, por favor. Dois minutos e meio. Três. Ninguém responde. Desisto, desligo, não deu. Onde eu estava com a cabeça para ter qualquer esperança? Ao menos tentei, ué, nunca se sabe. Ou pior: de muita coisa a gente não sabe. Mas de outras, sabe sim, sabe muito bem.

The post Quem sabe? appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
/colunas/quem-sabe/feed/ 0
Somos poucos 224t6b /colunas/somos-poucos/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=somos-poucos /colunas/somos-poucos/#respond <![CDATA[ .]]> Tue, 18 Jul 2023 12:23:14 +0000 <![CDATA[Colunas]]> <![CDATA[Crônica - Cássio Zanatta]]> /?p=17830 <![CDATA[

Somos poucos os que se apaixonam nessa idade. Somos poucos os que não trocam de canal diante de um filme em preto e branco. Poucos, bem poucos, os que param o que estão fazendo para ouvir um sino. Não mais do que algumas dezenas os que choram por motivos engraçados. Poucos os que se orgulham …

The post Somos poucos appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
<![CDATA[

Somos poucos os que se apaixonam nessa idade.

Somos poucos os que não trocam de canal diante de um filme em preto e branco. Poucos, bem poucos, os que param o que estão fazendo para ouvir um sino.

Não mais do que algumas dezenas os que choram por motivos engraçados. Poucos os que se orgulham de ter tão poucos amigos. Os que não matam a abelha que de repente pousou no braço.

Poucos os que, nas churrascarias rodízio, se esbaldam mesmo é com o bufê de saladas – particularmente com as azeitonas. A imensa minoria que não se conforma em não poder visitar Saturno, e que não engoliu muito essa história de que zero é um número par.

Aqueles que, à primeira brisa que anuncia o outono, não correm para pôr um casaquinho. Caberíamos numa Kombi os que vibram com o sucesso dos chegados. Numa canoa os que morrem de pena da cobrança imposta os gênios.

Somos o motivo das bulas detalhadas e daqueles programas que dão traço de audiência ainda estarem no ar. Os heróis da resistência sem heroísmo algum.

Daqueles raros que gostam quando, na viagem noturna, o ônibus para na rodoviária de cada povoado que encontra pela frente – alguns nem rodoviária têm, os ageiros descem numa esquina silenciosa, onde são recepcionados por um cachorro de rua abanando o rabo. Somos daqueles dois ou três que só descem na parada final, e chegam tão tarde que não há mais táxis disponíveis, e o jeito é ir pra casa andando.

Somos poucos os que conservam pelos carteiros uma inexplicável simpatia. Aqueles que preferem o sonho vulgar da padaria da esquina ao cheio de nove horas da doceria do shopping. Que fazem a barba só e precisamente de nove em nove dias. Que, no famoso desenho, acha a rainha mais bonita que a Branca de Neve: a beleza de uma lembra Greta Garbo; a da outra, em Minas a gente encontra às pencas.

Cada vez em menor número os que, hoje em dia, ainda acham o Brasil bacanérrimo. Mesmo entre nós, dois desistiram ano ado. Pensamos em criar um novo país, mas somos tão poucos.

Lotaríamos apenas um ônibus os que conseguem achar um casal de tico-tico escondido nas folhagens. Caberíamos numa sala pequena os que sabem as regras do jogo de gude. Os que fumam um cigarro por ano, e que gostam o mesmo tanto de Baden Baden quanto de Tiradentes.

Muito poucos os que contam com a iração da família mesmo sem saber fritar um ovo ou o que fazer com uma chave de fenda. Os que se alegram com a aparição de uma lagartixa em casa, leem Antonio Machado no original e vão à ópera no mesmo dia em que o médico deu a notícia.

Somos poucos, mas muito orgulhosos. Um punhadinho de orgulhosos.

Cássio Zanatta

The post Somos poucos appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
/colunas/somos-poucos/feed/ 0
Maria cortou o cabelo 1q31r /colunas/maria-cortou-o-cabelo/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=maria-cortou-o-cabelo /colunas/maria-cortou-o-cabelo/#respond <![CDATA[ .]]> Mon, 10 Jul 2023 11:58:21 +0000 <![CDATA[Colunas]]> <![CDATA[Crônica - Cássio Zanatta]]> /?p=17726 <![CDATA[

O barulho da chave interrompeu o parágrafo, a porta de casa abriu, ergui a cabeça do livro e – catapimba – dei com Maria criança. ado o susto bom (que não são só os ruins que acontecem nesta vida), entendi: Maria havia cortado o cabelo. Curto como quando era pequena. Levou um tempo até que …

The post Maria cortou o cabelo appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
<![CDATA[

O barulho da chave interrompeu o parágrafo, a porta de casa abriu, ergui a cabeça do livro e – catapimba – dei com Maria criança. ado o susto bom (que não são só os ruins que acontecem nesta vida), entendi: Maria havia cortado o cabelo. Curto como quando era pequena. Levou um tempo até que eu entendesse.

O engano durou o quanto leva para uma boca se escancarar. O tempo de contar histórias para Maria dormir. De dar uns tapinhas nas costas para fazê-la arrotar depois da mamada. Agarrei-a bem no colo e saltei as ondas do mar, as risadas mais altas que as ondas quebrando. Pude vê-la pequenina e atrevida se arriscando a andar. Ia dos braços de Beatriz para os meus, confiante. ou fácil pelo tapete em que um dia, correndo, iria tropeçar e abrir a testa no armário. Quando chegou a mim, dei esse mesmo abraço no corpo que virou de mulher e hoje é maior do que o meu.

Esse cabelo curto, que ela escovava cheia de poses, como se fosse a Pequena Sereia. Parava o que fazia e ia correndo em frente à TV, dançar com a Branca de Neve. E esse sorriso, que tão poucas vezes saiu do seu rosto (obrigado, vida, fiz o possível para que nunca saísse). Lá está a menina, parada junto à porta, esperando o veredito e se divertindo com meu ar apatetado. Ficou lindo, digo ou tento dizer. Ela descrê, demorei na resposta. Seu pai é vagaroso, minha filha. Ou ele insiste em tentar que as coisas lindas durem um tantinho mais.  

De diferente, não há a franja. Mas lá estão os mesmos olhos curiosos, que continuam a procurar no ar uma maravilha qualquer. Olhos que se levantam como os pés do chão na sua dança sem fim. E há as sobrancelhas, joelhos, testa, tudo que nela compõe lindeza.

Deus, eu faço qualquer coisa, dou minha estante de livros para o primeiro na rua, nunca mais ouço Mozart, viro abstêmio inveterado ou dou um fim nos meus tênis sujos de tão gastos, mas providencie amores bons para ela. Que sejam gentis e verdadeiros. E que a façam sofrer apenas o necessário para que se torne uma mulher ainda mais forte.

Maria corre para o quarto, para se ver no espelho. Atrás dela, na porta, surge Beatriz. Trocamos um olhar emocionado e constatamos que nossa menina voltou e não voltou, nunca foi, mas está de saída. E nos abraçamos forte, pois de um abraço nosso começou a nascer Maria. Tudo isso se ou em cinco segundos, talvez menos. Sustos, como sonhos, duram menos do que parecem. Mas por um instante voltei a ser o bobo encantado, que nunca me esforcei para deixar de ser. O livro fica para outro dia, empaquei no parágrafo que a vida escreveu e dele não pretendo sair tão cedo. Ou nunca mais.

The post Maria cortou o cabelo appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
/colunas/maria-cortou-o-cabelo/feed/ 0
Simplificando 592s6x /colunas/simplificando/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=simplificando /colunas/simplificando/#respond <![CDATA[ .]]> Mon, 03 Jul 2023 12:25:32 +0000 <![CDATA[Colunas]]> <![CDATA[Crônica - Cássio Zanatta]]> /?p=17629 <![CDATA[

Simplificando De repente, o sujeito percebe que sua vida anda complicada. Resolve então deixar de polvilhar açúcar e canela na banana, só a banana já está bom. Vende o carro, joga fora o cartão de crédito – se nem ele se dá crédito, por que aquele pedacinho de plástico daria? Doa suas camisas novas e …

The post Simplificando appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
<![CDATA[

Simplificando 1t3p4

De repente, o sujeito percebe que sua vida anda complicada. Resolve então deixar de polvilhar açúcar e canela na banana, só a banana já está bom. Vende o carro, joga fora o cartão de crédito – se nem ele se dá crédito, por que aquele pedacinho de plástico daria? Doa suas camisas novas e fica com as que não pedem mais explicações.

Percebe que metade da mala basta para seguir viagem. Que assistir à onda se entregar e recuar na areia vale todo o tempo. a a entender os motivos dos arrepios, deixa de conferir de meia em meia hora as mensagens no celular e concede mais respeito aos furos no tênis.

Ser simples é difícil como dizer não. Ouvir o silêncio, acordar por puro cansaço de dormir. Difícil, não impossível, como seria agradar a todos. Simples como o futebol na tarde de domingo no estádio de uma cidade que nem no mapa está. Assumir os ares de importância de um banco de praça.

Reconhecer a honestidade de um bom vinho, entender o trabalho do tempo, da terra e do homem para que ele esteja ali. Viajar de ônibus à noite, ver as estrelas se revelarem entre os galhos das árvores, mastigando biscoito de polvilho com o único propósito de matar a fome. Agradecer ao motorista a viagem, que dirigir aquele troço todo é tudo, menos simples.

Impressionar-se com a lentidão com que no outono o fim de tarde dá lugar à noite. Captar a umidade das poças. Dar menos opinião. Nas caminhadas, reparar que a chegada é sempre adiante do que se pensava, um ali que só espicha.

Simples como o vento de junho. O raciocínio das galinhas. O giro perfeito do pião enquanto tem força. Nunca complicado como preencher formulários ou abotoar o colarinho da camisa social que não acompanhou o alargar do pescoço.

Prestar atenção a quem está ao lado. Oferecer ajuda antes que lhe peçam. Abaixar-se para falar com criança. A simplicidade pode estar em ter uma vergonha congênita ou gostar de azeitona. Estar tão sereno que nem um coelho se assuste com sua presença. A simplicidade é, antes de tudo, dizer obrigado.

Ser simples é cortar. Ignorar. Cancelar. Podar. Diminuir. Desfazer. Usar verbos crus e, às vezes, duros.

Mas ser simples é nada simples. Porque esperam tanto da gente: que aponte caminhos, compareça ao evento, encaixe tiradas inteligentes ou sarcásticas, não suspire em público e diga certezas que está longe de ter.

O simples é arisco às explicações. Aliás, se exige mais de uma, já deixou de ser. Daí nasce o barro, lodo ou areia movediça que emperra o o. É preciso pouco treino para ser simples. Chega um tempo (e ele devia ter chegado antes) que complicar dá uma preguiça. Chega a doer as juntas. E esse sol lá fora.

The post Simplificando appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
/colunas/simplificando/feed/ 0
Quer dizer que t58q /colunas/quer-dizer-que/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quer-dizer-que /colunas/quer-dizer-que/#respond <![CDATA[ .]]> Mon, 26 Jun 2023 12:12:18 +0000 <![CDATA[Colunas]]> <![CDATA[Crônica - Cássio Zanatta]]> /?p=17551 <![CDATA[

Quer dizer que Quer dizer que, antes de dormir, o assassino toma um leitinho? Quer dizer que a mulher mais linda do prédio, da rua, do bairro sofre de depressão? Que não sou só eu que sinto cócegas no nariz quando as mãos estão ocupadas e é impossível coçar o nariz? Que depois de todos …

The post Quer dizer que appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
<![CDATA[

Quer dizer que 1w6l1s

Quer dizer que, antes de dormir, o assassino toma um leitinho? Quer dizer que a mulher mais linda do prédio, da rua, do bairro sofre de depressão? Que não sou só eu que sinto cócegas no nariz quando as mãos estão ocupadas e é impossível coçar o nariz? Que depois de todos esses anos, a soma dos quadrados dos catetos continua sendo igual ao quadrado da hipotenusa?

Quem diria: longe das câmeras, o galã palita os dentes; o monge tem taras incontroláveis. Como assim, aquela nuvem de noite no céu não é nuvem, é a Via Láctea, bilhões e bilhões de estrelas, tão distantes que parecem uma nuvem, e, para completar o espanto, nosso Sisteminha Solar faz parte dela?

Como pode: seu desafeto ser bom ator e mestre em contar piada? Quer dizer que um ovo por dia não é fatal ao coração? E o tanto de ovo que a gente evitou porque os médicos eram taxativos? Sério mesmo que as moscas, ao contrário dos pernilongos, não voam no escuro?

Cão que ladra morde sim, senhor, sou testemunha. Entrar na piscina depois de almoçar não é morte certa, veja só. Sério que tem prédio que pula do 12° para o 14° andar – não tem o 13° só por superstição? Há mesmo palestinos que não odeiam judeus e vice-versa? Existe então uma esperança quietinha, voando escondida entre os homens e que, de vez em quando, dá o ar da graça (vide a invenção do bambolê)?

E não é que o rádio não morreu, as gravatas sobrevivem, o mundo não acabou coisa alguma, e a única preciosidade que sumiu mesmo foram os Bailes de Aleluia na Associação? Ainda há quem conteste a veracidade do aquecimento global? Quem não reconheça a genialidade de João Gilberto? E vai me dizer que as pessoas ainda descascam caqui e cospem o caroço da jabuticaba – por quê, ó Senhor, por quê?

Ainda não asfaltaram a estrada para São Sebastião da Grama. Ainda não ressuscitaram os chapéus e o quebra-queixo. Nem houve a esperada conciliação entre o gosto de café e a pasta de dentes. Ainda há quem compare Mozart com Beethoven, Pelé a Maradona, Monet a Cezanne, Beatles a Stones, Bandeira com Drummond, sendo que a discussão só faz sentido se for motivo para mais três rodadas no bar.

Quer dizer então que no fim o herói nem sempre é o mais invejado? Que os tropicões ensinam mais que as certezas? Que o crime não compensa, mas não pelos motivos que o Batman ensinou? Que a falta ou o excesso de dinheiro corroem o peito dos homens? Quer dizer que a pessoa parte deste mundo e não se digna a mandar nem um cartãozinho no Natal?

Que ela perguntou por mim, assim, como quem não quer nada? Que o verdadeiro Deus é o tempo? E que seu relógio de uma hora pra outra deu para adiantar?

The post Quer dizer que appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
/colunas/quer-dizer-que/feed/ 0
O espelho partido 4t315m /colunas/o-espelho-partido/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-espelho-partido /colunas/o-espelho-partido/#respond <![CDATA[ .]]> Mon, 19 Jun 2023 12:51:00 +0000 <![CDATA[Colunas]]> <![CDATA[Crônica - Cássio Zanatta]]> /?p=17465 <![CDATA[

O espelho partido Sobrou o armário no velho quarto. Sobreviveu a todos. A porta nem mais abre direito, range em protesto, mas o espelho insiste. Está quebrado, seu vidro partido divide a imagem em duas metades que não se encontram, num salto de continuidade entre as linhas. Um cubista tardio. Há manchas nos cantos. São …

The post O espelho partido appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
<![CDATA[

O espelho partido

Sobrou o armário no velho quarto. Sobreviveu a todos. A porta nem mais abre direito, range em protesto, mas o espelho insiste. Está quebrado, seu vidro partido divide a imagem em duas metades que não se encontram, num salto de continuidade entre as linhas. Um cubista tardio.

Há manchas nos cantos. São as rugas do espelho, e os homens se sentem vingados pelas duras verdades um dia reveladas. Parece cansado de refletir os mesmos assuntos: as cores esmaeceram, seu azul é quase cinza, e o amarelo esqueceu como se faz.

O primeiro reflexo de um espelho é inexato. Leva tempo para ele aprender os contornos de um, o sorriso do outro; pouco a pouco, ele vai definindo a imagem. Com este não foi diferente. Sorte dos que viveram muito e puderam se ver retratados com precisão.

É mais antigo até que a mesa da sala. Ouviu com atenção as risadas, as discussões e, em especial, os silêncios. Duplicou três lustres diferentes e duas camas. Abateu oito besouros que voaram ao seu encontro, confundido com uma janela. Já refletiu um sorriso puro, as espinhas mais teimosas e levou dois murros de desespero. A tudo resistiu com dignidade.    

Lembra-se do tio a dar os últimos retoques para ir ao baile, ajeitando os (já poucos) cabelos e a gravata. Do menino que fazia caretas para assustar a si mesmo. Da netinha que o lambeu para saber que gosto tinha. Da garota que ensaiava os gestos e palavras para um encontro. Das gotas de laquê que a mãe, ainda jovem, borrifava no cabelo, salpicando o vidro. Até do cachorro que latia para seu reflexo, ia procurar atrás do móvel o oponente, e voltava intrigado com a petulância do desconhecido que o imitava.

Mas isso faz tempo. Quando a luz falhava toda noite, e as velas e lamparinas nas gavetas viviam tensas, na expectativa de serem acionadas a qualquer momento.

A imagem que persistiu: a do tio a alisar o bigode enquanto, estarrecido, vislumbrava sua decadência. De quantos dos seus 80 anos fora testemunha?

No armário, ficavam as roupas e os travesseiros que evaporaram no tempo. Velhas varas de pescar nele se encostavam. Sapatos, botas de borracha e chinelos gastos na parte de baixo. E, dominando a maior parte da superfície, o espelho. Cansado, hoje a quase todo o tempo dormindo, a sonhar que somos uma família de vampiros, que não exige mais dele reflexo algum.

Breve, os dois, armário e espelho, irão para o porão, se juntar a outros cacarecos e às caranguejeiras. Se todos se foram, vaidades e ilusões, risadas e rancores, é natural que eles também desapareçam. Talvez a madeira do armário seja reaproveitada: sirva de pasto para os cupins ou para as fogueiras nas noites frias, mas para o espelho não há esperança. Em todo caso, saberá guardar segredo.

Assim como não abre mais, a porta do armário também não fecha direito. Pela fresta estreita, me chegam vozes distantes, acontecimentos que insistem, e vejo naquele interior conhecido todo o escuro das luzes que se foram.

Espelho, espelho meu: existe alguém mais estranho do que eu?

The post O espelho partido appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
/colunas/o-espelho-partido/feed/ 0
Lancaster 3l202d /colunas/lancaster/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=lancaster /colunas/lancaster/#respond <![CDATA[ .]]> Mon, 12 Jun 2023 11:31:50 +0000 <![CDATA[Colunas]]> <![CDATA[Crônica - Cássio Zanatta]]> /?p=17387 <![CDATA[

Lancaster Lancaster era o nome de um perfume muito vendido ali pelos anos 70. Havia a linha original, argentina, de qualidade superior, mas dessa eu nada sei. Conheço a versão brazuca, bem popular e de preço ível, encontrada em farmácias e até em supermercados, o que não era (e ainda não é) exatamente um aval …

The post Lancaster appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
<![CDATA[

Lancaster 2b19o

Lancaster era o nome de um perfume muito vendido ali pelos anos 70. Havia a linha original, argentina, de qualidade superior, mas dessa eu nada sei. Conheço a versão brazuca, bem popular e de preço ível, encontrada em farmácias e até em supermercados, o que não era (e ainda não é) exatamente um aval de qualidade. Sumiu do mapa, como tanta coisa de lá pra cá. Não se acha em lugar algum.

Opa. Não se acha, vírgula: está bem aqui na minha frente, no armário do banheiro. Intacto. Foi o primeiro presente que comprei para meu pai, tão logo recebi o primeiro salário no meu primeiro emprego. Deve ter custado uma fortuna para um iniciante que ganhava pouco mais de um salário mínimo. Eu era revisor numa editora e corrigia os verbetes de uma enciclopédia.

Ganhava pouco, mas me divertia: o diretor instituiu a peculiar regra de traduzir para o português o primeiro nome das personalidades citadas. Assim, fui apresentado a Ludovico Beethoven, Guilherme Shakeaspeare, João Lennon, Carlos Marx, Paulo Picasso. Não podia ir pra frente: a editora, como o Lancaster, é hoje apenas um verbete do ado.

Em vez de abrir e usar o perfume (que, vamos ser honestos, estava longe de ser um Chanel), meu pai resolveu guardar como um troféu valioso. Assim o achamos, tal como o comprei, quando eu, minha mãe e meus irmãos fomos arrumar e dividir as coisas do pai, depois que ele se foi.

O tempo escureceu o líquido e amarelou o rótulo, que já não era chegado numa modernidade. O conteúdo, originalmente de 90ml, evaporou um bom tanto. Talvez, tenha perdido todo o álcool e sobrado somente uma indesejada doçura – péssima para os perfumes, complacente com as memórias.

Algumas vezes me vem a tentação de abri-lo, mas nunca o fiz. Temo que assim esteja abrindo uma caixa de Pandora, que vai ressuscitar o Centro de São Paulo, a Barraca do Gustavo em Itanhaém, Elizeth Cardoso, as moitas de sensitivas da Fazenda Fartura, os Opalas de quatro portas e o nosso melhor futebol. E essa possibilidade, não que dê medo, mas é demais, não dou conta.

Em todo caso, tento abrir a tampa com minha força espantosa, que empolgou gerações. Tento uma, duas, cinco vezes. Não consigo, ela emperrou (será que açucarou, como as tampas irredutíveis dos potes de geleia?) Deixe estar, talvez seja melhor assim. Devolvo o velho Lancaster ao armário do banheiro, como uma preciosidade que a gente guarda na estante. É um lugar inglório, bem sei, entre um aparelho de barbear já sem corte e o fio dental. Mas é um canto seguro para que ele guarde sua história e sobreviva, quem sabe, até a mim. Não consegui abrir. Não senti o perfume (ruim). Mas, de uma certa maneira, estou impregnado.

Cássio Zanatta

The post Lancaster appeared first on Gazeta Do Rio Pardo.

]]>
/colunas/lancaster/feed/ 0